Brasil, A Quarentena Como Possibilidade: Um Diálogo Africano E Sul-Americano

ANA GRETEL ECHAZÚ BÖSCHEMEIER & PINGRÉWAOGA BÉMA ABDOUL HADI SAVADOGO

A presente é uma reflexão a duas vozes entre pessoas com origens continentais diversas que moram no Brasil. Abdoul Hadi P.B. Savadogo é socioantropólogo, burkinabê-malinês, (Burkina Faso e Mali) atuando no âmbito dos Estudos Africanos. Ana Gretel é antropóloga, feminista, do noroeste de Argentina, trabalhando no campo dos direitos humanos e a saúde coletiva com um olhar sensível para questões de gênero, raça-etnia e diversidade cultural. Abdoul mora no Brasil há oito anos, enquanto que Gretel há quase catorze. Resistindo com raízes aéreas, procuramos costurar nossa escrita acadêmica em pontos de aliança com outros(as) sujeitos(as) que encontramos na militância e na vida.

Defronte à pandemia da COVID-19, sentimos a importância de interpelarmos à comunidade acadêmica sobre a própria ideia de quarentena. Esta última que envolve a noção de que há uma casa particular que abriga uma família nuclear e que, em qualquer país do mundo, mostra uma realidade enviesada em termos de classe mas não somente isso, também de raça-etnia, gênero e deficiências. Além disso, o que significa fazer uma “quarentena consciente”? Envolve a capacidade de fazer exercícios “anti-stress”, ou de refletir criticamente sobre as condições que fazem possível a existência mesma da quarentena? A quarentena é a mesma nos condomínios e nas favelas, nas casas de idosos, nas ruas onde dormem os desabrigados, nos dormitórios coletivos de estudantes que são mães nas residências universitárias? Visivelmente não. É sobre uma necessária sensibilização frente a essas especificidades que viemos falar.

Formas de resistência às políticas do Norte global

Aminata Dramane Traoré (2012) pensa a respeito aos contextos africanos submetidos às ditaduras do Norte: “os governos seguem as regras dos países ocidentais, que dão origem aos planos e programas de banqueiros internacionais e das grandes potências do Norte”. Tanto lá quanto aqui no Brasil e no restante da América Latina, essas ações exaltam a pobreza e geram fenômenos de crescente violência e precarização. Da mesma forma que a distribuição dos capitais, a distribuição de informações científicas sobre a pandemia segue o mesmo caminho: do centro para as margens, da mão de grandes centros científicos como o Imperial College (o nome é uma dolorosa reafirmação disso) e a John Hopkins University, em uma labor colonizadora que usa o poder tecnológico e a língua inglesa como língua franca, universal, absolutamente imprescindível para acompanhar o letramento científico e para nutrir a tomada de decisões políticas do momento. A diversidade possível da experiência humana em relação com a entidade da COVID-19 se reduz às fórmulas globais colocadas como cálculos probabilísticos dentro dos artigos científicos, porém tomadas com a força de uma arma nas decisões políticas (Basile, 2020).

Isso aconteceu no melhor dos cenários, que foi o da reação dos governos estaduais brasileiros e de várias associações científicas perante as novas necessidades impostas pela pandemia. Mas também tivemos, na esfera das decisões do executivo federal e da mão do antipresidente Jair Bolsonaro, a possibilidade de acompanhar um lado ainda mais doloroso da história, que é a negação da ciência e, com ela, a negação da necessidade de parar o mundo para refletir sobre o tipo de organização social que o enfrentamento a essa pandemia requer. A necropolítica (Mbembe, 2018) do governo brasileiro nem precisou militarizar para impor uma ordem: ela já está instalada há anos e, nela, quem morre é quem está na linha de frente em termos de vulnerabilidade. A doença nos mostrou que a insensibilização tem sido uma estratégia que aliou o neoliberalismo mais decadente ao fanatismo religioso mais perigoso.

As conseqüências desse crime contra a humanidade são drásticas para milhões de vidas precarizadas devido à impossibilidade delas em acessar as necessidades básicas dentro desse “direito à quarentena” como primeira ação de emergência a ser habitada nesta crise: comida para assegurar a saúde física; sistema de saúde de qualidade para lidar com as múltiplas doenças; um lar onde se reconfortar junto com a família e a possibilidade não somente do acesso à informação, mas também de interpretá-las de forma correta. E no que diz respeito às demais necessidades, como o lazer e a cultura, aparecem como um luxo inalcançável.

Neste ponto, abraçamos as armas críticas dos estudos decoloniais para fazer frente aos novos desafios. Em primeiro lugar, ressignificamos a necessidade da tradução intercultural como estratégia de compreensão de um mundo que se apresenta como urgente; o mundo da epidemiologia, da biossegurança, das políticas globais de saúde do Norte global para podermos filtrar quais são as informações que precisamos – dentro das dinâmicas do “pensar certo” invocado por Paulo Freire (1994) – para modelar nossa ação de forma correta, acompanhando nossa teorização sobre a tradução como fato cultural e problemático/problematizador a partir de contribuições dos estudos pós-coloniais (Bhabha, 1994). Lidar com informações epidemiológicas desprovidas de uma reflexão sobre a geopolítica da distribuição do poder de fazer viver e deixar morrer pode ser tóxico e perigoso: a carga de imperialismo que os boletins epidemiológicos diários exalam é brutal. Filtrar e, pedagogicamente, ensinar a filtrar informações substanciais, agilizando uma alfabetização científica decolonial é o caminho que escolhemos transitar neste momento crítico.

Precisamos continuar fortalecendo nossos diálogos sul-sul para compreender que não somente importa como é que o vírus se comporta, mas como é que as comunidades se comportam frente ao vírus: ativar formas de prevenção e ação que sejam sensíveis às realidades das comunidades, pressionarmos ao governo para que efetive formas de proteção social e, finalmente, pensarmos de quais maneiras é que vamos nos apropriar desses conhecimentos aparentemente universais, mas que estão sustentados por geopolíticas de dominação global da circulação de corpos, informações e – uma dimensão na qual não tínhamos pensado tanto, ao menos na nossa cotidianidade – também micro-organismos com grande poder de agência, como o vírus.

Pensar na justiça epistêmica (Carneiro, 2005) e a luta pelo reconhecimento de direitos das diferentes comunidades e coletivos do mundo envolve incluir os extraordinários efeitos da resposta social, política e econômica frente ao coronavírus nas vidas, nos corpos, nos sentipensares das pessoas que habitam nossas comunidades. Isso envolve um diálogo de saberes que ouça todas as vozes e que nos permita repensar a noção de risco em sociedades desiguais e excludentes.

Não acreditamos que seja necessário conquistar a “igualdade” para, somente então, podermos pensar sobre as diferenças que nos constituem. Da mesma maneira, não apoiamos as abordagens que motivem o “se manter vivo” sob as leis da biopolítica global dissociando a especificidade social, cultural e espiritual de cada corpo e forma de viver. Pensar respostas à pandemia, nesse sentido, também envolve pensar em formas de “bem viver” nas nossas comunidades, tanto rurais quanto urbanas.

Assim, nos permitimos sentipensar que a luta tem duas faces, e nesse momento em que parece que respostas homogêneas, urgentes e de cima-para-baixo são as mais efetivas, apelamos às organização criativa de coletivos e comunidades, tradicionais, ancestrais, espirituais, étnico-raciais, de cientistas, acadêmicos (as), de mulheres, de ativistas e ao surgimento de novos coletivos – como aquele das filhas e filhos adultos de diaristas – para que transformem as orientações gerais dos conhecimentos a respeito da pandemia em uma luta própria, abraçando seu direito à quarentena e outras formas de enfrentar as realidades sociais decorrentes da pandemia a partir da sua especificidade social e cultural.

Isso envolve, em muitos casos, organizar a luta para que condições sanitárias, laborais, de coexistência urbana, de transporte etc. que estavam extremamente precarizadas encontrem agora um impulso para serem reivindicadas como o que são: direitos essenciais. Em diálogo com Achille Mbembe (2020), reconhecemos que existem comunidades por baixo das “populações” que a epidemiologia estuda. Nesse momento de caos social, as vozes destes grupos estão sendo silenciadas ainda com mais força. Permanece a pergunta: como fortalecer institucionalmente essas comunidades – envolvendo recursos: canalização especificada dos saber-fazeres, reconhecimento jurídico, recursos econômicos e material de atuação – que estão cumprindo esse relevante trabalho, fortalecendo a colaboração com as instituições e órgãos chave? Como garantir isso agora e depois da pandemia? E mais ainda, como fazer com que esses repasses de recursos sejam reconhecidos como dívidas do Estado, e não como dádivas do poder que só fragilizarão a sua autonomia?

Os estudos mostrando a reação da terra mãe, pachamama para os povos andinos, diante desta ”pausa” das atividades industriais e as práticas ligadas ao ritmo da vida moderna nos coloca em frente do que realmente precisamos fazer (Carbinatto, 2020). Nesse sentido, precisamos fomentar estratégias que não nos levem a outro ecocídio: o do uso abusivo de materiais descartáveis para nos proteger do vírus.

Concordamos com Achille Mbembe (2020)  a respeito do poder de morte que a COVID-19 ”dá” a cada cidadão, empobrecido ou não. Nos encontramos realmente diante da possibilidade de enxergar nosso radical poder democrático. Com tal oportunidade nas mãos, será que o povo não se animará a decidir a forma e o conteúdo de sociedades e comunidades que atendam o reconhecimento pleno de seus direitos? Indubitavelmente, o momento é oportuno para uma revolução, tanto político quanto cultural; uma real mudança histórica de paradigma. Enquanto isso, continuaremos nossa labor, nosso diálogo e nossa luta pelo reconhecimento das diferenças no meio à homogeneização das políticas globais de saúde.



Dr. Pingréwaoga Béma Abdoul Hadi Savadogo possui doutorado em Anthropologia (UFRN, Brasil), Master em Terapia Ocupacional (UFSCAR, Brasil) e Graduação em Anthropologia Social (Bamako University, Mali). É Pesquisador Associado I no Instituto Estudos da Africa da Universidade Federal de Pernambuco (IEAf-UFPE). O trabalho dele focaliza-se em Estudos da África, Perspectivas Pós-Coloniais, Islã e Cidadania Cultural, Ética e Responsabilidade Social, Estudos da Juventude e Desenvolvimento Urbano/Rural.
Link para o CV:
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4679558A4
Contato: savadogohadi@gmail.com

Ana Gretel Echazú Böschemeier, feminista & mãe, é Professora Adjunta no Departamento de Antropologia da UFRN, Brasil. Realizou Pós-Doutorado em Saúde Coletiva (UFRN, Brasil), Doutorado em Antropologia (Universidade de Brasília, Brasil), Mestrado em Antropologia Social (UFRN, Brazil) e Bacharelado em Antropologia (UNSa, Argentina). A pesquisa e trabalho dela com as comunidades focaliza Direitos Humanos, Interseccionalidade, Saúde Coletiva, Estudos Decoloniais e Crítica ao Cânone Antropológico.

Link para CV: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4486052P1

Contato: gretigre@gmail.com

REFERÊNCIAS

BASILE, Gonzalo (2020) “Coronavirus en América Latina y Caribe: entre la terapia de shock de la enfermología pública y el fortalecimiento de la saúde colectiva”, publicado no dia 25-03-2020, disponível em: https://www.clacso.org/coronavírus-en-america-latina-y-caribe-entre-la-terapia-de-shock-de-la-enfermologia-publica-y-el-fortalecimiento-de-la-saúde-colectiva/.

BHABHA, Homi K. (1994) The Location of Culture. New York: Routledge.

CARNEIRO. Aparecida Sueli (2005) A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Tese (Doutorado em educação). Universidade de São Paulo, São Paulo. Disponível em: < https://negrasoulblog.files.wordpress.com/2016/04/a-construc3a7c3a3o-do-outro-como-nc3a3o-ser-como-fundamento-do-ser-sueli-carneiro-tese1.pdf>.

CARBINATTO, Bruno (2020) Poluição atmosférica cai mundo afora com a pandemia de Covid-19. Super, 03-2020. Acessível em: https://super.abril.com.br/ciencia/poluicao-atmosferica-cai-mundo-afora-com-a-pandemia-de-covid-19/

FREIRE, Paulo (1996) Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 25. ed. São Paulo: Paz e Terra.

MBEMBE, Achille (2018) Necropolítica. São Paulo, SP: N-1 edições.

MBEMBE, Achille (2020) Pandemia democratizou poder de matar. Folha de São Paulo, março 2020. Acessível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/03/pandemia-democratizou-poder-de-matar-diz-autor-da-teoria-da-necropolitica.shtml

TRAORÉ, Aminata Dramane (2012) L’Afrique mutilée. Paris: Taama Editions.

Revisão do português: Maria Clara Fernandes dos Santos

Web Art by Brazilian artist Thiago Okan [@thiago.jonas.9]

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